quinta-feira, 26 de março de 2009

CIRCO E PÃO


“Na dúvida, arquiva-se, tranca-se a Ação Penal ou absolve-se (in dubio pro reo), e nunca se processa, pronuncia-se ou condena-se (in dubio pro societate).
As garantias individuais são direitos concretos que prevalecem ante as abstrações (in dubio pro societate), estas servem ao direito autoritário, aos regimes antidemocráticos ou aos governos ditatoriais.
Não se pode permitir que nos regimes democráticos as abstrações “em nome da sociedade” venham destruir o sistema jurídico humanitário positivo, para dar lugar a um odioso direito repressivo, onde o Estado condena e acusa sem provas concretas”
[1]
[1] Cândido Furtado Maia Neto – Promotor de Justiça do Estado do Paraná

Em linhas gerais, temos que no Brasil o sistema processual penal foi codificado às luzes fascistas da Era Vargas em confronto com uma Constituição Federal garantista, que consagrou como fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana e elevou o dogma de princípio maior, dentre outros, a presunção do estado de inocência.

Segundo os fundamentos da teoria do garantismo, magnificamente tratados na obra Derecho y Razón – teoria del garantismo penal, de LUIGI FERRAJOLI, somente se pode conceber o exercício do ius puniendi estatal se assegurada a tutela dos direitos fundamentais.

Dois fatores conferem especial relevância ao estudo dos limites do ius puniendi.

Em primeiro lugar, os drásticos efeitos da intervenção penal, seu impacto destrutivo e irreversível e os elevadíssimos custos sociais da "cirurgia penal".

Em segundo lugar, a vocação intervencionista do Estado, sobretudo o social, que potencializa a sua presença assim como o emprego de toda sorte de meios eficazes para resolver os conflitos e dirigir a convivência social.

Em outras palavras:

A atuação punitiva do Estado é qualitativamente drástica e quantitativamente intensa

É imprescindível, portanto, buscar um ponto de equilíbrio entre o dever do Estado de punir e o dever desse mesmo Estado de respeitar as garantias individuais constitucionalizadas.

É exatamente nesse dilema que surge o conflito efetividade x normatividade, ressaltado por Ferrajoli.

De nada adianta, em síntese, existir uma Constituição Federal garantidora de direitos fundamentais se, na prática, essas garantias são atropeladas pela aplicação de normas e conceitos oriundos de um sistema falido e de conotação antidemocrática.

Nesse sentido, salta aos olhos a aplicação, infelizmente ainda comum nos meios forenses, do in dubio pro societate para dar início a ações penais públicas e privadas sem razoável conjunto probatório, na esperança de que possam ganhar robustez na instrução processual.

A regra, portanto, seria: na dúvida, processa-se.

Se, até o final da instrução, permanecer a dúvida, absolve-se.

Será que tal orientação está de acordo com o processo penal garantista? Como compatibilizá-la com o princípio da presunção do estado de inocência?
Por que o in dubio pro reo só pode ser aplicado no final do processo, quando se sabe que o processo, em si, já é uma pena?

A princípio, a resposta a tais questionamentos somente pode ser encontrada caso se admita que a interpretação pelo in dubio pro societate, definitivamente, não está conforme o texto constitucional.

Nesse sentido, primorosa é a lição de AURY LOPES JR., ao afirmar que:

-“também é importante desmascarar o frágil argumento de que no momento de admissão da denúncia exista uma presunção de in dubio pro societate. Não só não existe no plano normativo tal previsão, como, se existisse, seria inconstitucional, pois, ao afirmar que na dúvida deve-se proceder contra uma pessoa, estaríamos retirando o manto de proteção constitucional da presunção de inocência”.
Como bem identificou o autor mencionado, é oportuno que se diga, inicialmente, que – apesar do in dubio pro societate se identificar perfeitamente com o modelo autoritário do Código de 1941 – em nenhum momento foi ele previsto de forma expressa na lei.

Com efeito, o art. 41, do C.P.P., que trata dos requisitos da denúncia e da queixa, dispõe que a exordial da ação penal “conterá a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias”.

Ora, se o autor da ação precisa narrar o fato criminoso de forma circunstanciada deve ter, naturalmente, provas suficientes para tanto.

É o que AFRÂNIO JARDIM chama de “suporte probatório mínimo”, salientando: “torna-se necessária, ao regular exercício da ação penal, a sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária”.

Infelizmente, muitas acusações temerárias e vazias são levadas a cabo, na falsa premissa de que a dúvida deve prevalecer em favor da sociedade, ainda que para isso, exponha-se o réu ao constrangimento indevido de um processo penal, com toda a carga estigmatizante que o acompanha.

É imperioso salientar que não se está aqui a pregar a necessidade da certeza para ajuizar a ação penal, até porque esta sempre será relativa. O que se pretende é minimizar os males que a dúvida traz ao sujeito passivo da relação processual. E qual o limite da dúvida?

Com maestria, AURY LOPES JR.- ao tratar dos sistemas de investigação preliminar no processo penal - destaca que referida fase pré-processual (no Brasil, representada pelo Inquérito Policial) deve funcionar como um “filtro” para evitar acusações infundadas.

Afirma o autor que o filtro processual é necessário em razão de três fatores: o custo do processo (incluindo-se, aqui, as penas processuais), o sofrimento que causa para o sujeito passivo e a estigmatização social e jurídica que gera.
CARNELUTTI, citado por Lopes Jr., ensina que:

“...enquanto a investigação deve se prender somente ao juízo de mera possibilidade, a ação penal, para ter início, exige mais do que isso, exige efetiva probabilidade. Possibilidade significa que as razões favoráveis e desfavoráveis à hipótese (imputação) são equivalentes; enquanto a probabilidade indica uma predominância das razões positivas (em favor da acusação) sobre as negativas”.

Total razão assiste ao insigne processualista.

Acusações injustificadas, com base no in dubio pro societate, possuem um efeito criminógeno espetacular. Além de submeter o imputado ao constrangimento natural do processo penal, ainda o expõe a outras conseqüências mais drásticas, verdadeiras penas processuais, como v.g., as prisões cautelares e os assédios da mídia sensacionalista que se alimenta de escândalos e muitas vezes sequer espera a formalização da acusação, promovendo uma execração pública do investigado antes mesmo de existir processo.

Nas palavras de Américo Taipa de Carvalho, renomado penalista lusitano, tem-se que:

"condenar alguém, havendo dúvida razoável sobre a verificação de um elemento constitutivo de uma causa de justificação (tipo justificador), é, humana e jurídico-penalmente, tão inadmissível e injusto como considerar e dar como provada (e, assim, condenar) a prática do fato típico (tipo legal em sentido estrito), apesar de existir e permanecer dúvida razoável sobre a verificação de um elemento do respectivo tipo legal. Por outras palavras: é tão injusto condenar alguém, havendo dúvida razoável sobre a justificação do fato típico como condenar alguém, havendo dúvida razoável sobre a tipicidade da conduta. Tal como no primeiro caso, também, no segundo, há dúvida sobre a ilicitude do fato; donde que a solução não pode deixar de ser senão a imposta pelo princípio in dubio pro reo"


Arremate conclusivo sobre o assunto vem de Figueiredo Dias:

"O princípio "in dubio pro reo" aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude (v. g. a legítima defesa). A persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à conseqüência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido. Não assiste, deste modo, qualquer parcela de razão ao STJ quando afirma, no seu Acórdão de 14 de Julho de 1971, que tratando-se duma causa justificativa do fato, é ao réu que cabe alegá-la e prová-la" (Direito Processual Penal, 1974, pp. 21 1-9).


Agora, de acordo com a doutrina de Ferrajoli, que é o máximo expoente do garantismo, aprendemos que no sistema penal onde que a pena fica excluída da incerteza e da imprevisibilidade de sua intervenção se tem a certeza de que não se pode condenar alguém tão somente em decorrência de uma presunção ou de uma dúvida.

O juiz, destarte, já não pode ser concebido como a boca da lei (la bouche de la loi), nem tampouco como a boca do Direito, mas sim, como a boca dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo positivados na lei, na Constituição e no Direito humanitário internacional.


Enquanto isso, o povo se alimenta se circo e pão.